quarta-feira, 27 de maio de 2009

Escritonológico

- Por fim cá estou, nestes escassos e humildes metros quadrados de chão, que facilmente seriam considerados por mim, pérola em ostra de tédio. Não fazes ideia, pequeno boémio, do quão entediante foi hoje, o período decorrido defronte à minha secretária de canetas, folhas e cadernos em desalinho, assim como prosas não literárias e imagens fastidiosas que se vão alinhando no meu monitor e desperdiçando as minhas horas. Todo o escritório é um antro tecnológico com algumas velharias informáticas dispersas aqui e ali. Carcaças de antigas máquinas e verdadeiras relíquias, numa mistura caótica com equipamentos recentes e novelos de fios eléctricos perdidos entre tomadas.

Pessoas afáveis em meu redor juntam-se diariamente a mim, num solidário silêncio de palavras durante o tempo da labora, lembrando vagamente companheiros de guerra, cada um no seu espaço, mas todos reunidos num mesmo lugar físico e psicológico. Todos têm direito a dias mais azuis e a outros de diferentes tonalidades, mas as forças acabam por equilibrar-se num esquema de vectores newtoniano, em que é impossível permanecer sombrio por muito tempo.

Bill Callahan e outros entoam as suas melodias, às vezes num segredo murmurado ao meu ouvido, outras numa alegre cantoria geral, aligeirando o ambiente. De quando em quando, conversas súbitas cruzam o ar em alegre tumulto, terminando tão depressa como começaram.

Olha, pede-me um moscatel! Esse vinho licoroso liberta-me de toda a tensão acumulada, constituindo a chave da corrente que me prende o tornozelo da alma, a uma bola de ferro imaginária. Sim, com casca de limão e uma pedra de gelo, por favor.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Descrições Indescritíveis

Chego ao Café numa noite de Outono. O vento deixa-me o cabelo em desalinho e sobe-me a saia ao estilo desse ícone que é Marilyn Monroe. Abro a porta através do postigo. São 21:43, horas de parado movimento, noite de quarta-feira, de um mês de folhas caídas sem feriados. Há um longo silêncio na sala âmbar, um ambiente violentamente cruzado entre o monástico e o profano. Longos bancos de madeira corridos e quietos contrastam com o brilho das poucas lâmpadas eléctricas a dançar nas garrafas, de sentinela adormecida e espirituosa na parede. Aproximo-me do balcão de madeira e peço um chá de limão. Uma nuvem de vapor de água quente irrompe subitamente da tumular máquina de café, lançando um silvo agudo que troveja por debaixo da televisão ligada. São 21:48 e nos cinco minutos que se arrastam naquele sítio sem tempo, já o limão se despedaça em casca fina, e emulsiona na chávena branca. A pequena criatura que se encontra atrás do balcão é agri-doce atendendo-me de um modo antipaticamente educado. Olho para o fundo da sala e vejo um perfil conhecido encostado à janela. Afinal, talvez precisasse de algo mais forte que um mero chá de limão...

Recortado contra o papel de parede amarelo, que decerto em anos passados fora sucesso, o louco agita-se no interior do casaco de cabedal, observando a janela próxima, onde duas gotas de água se despenharam num burburinho de gente crescida, arremessando-se com força contra o vidro baço de tabaco como crianças. Passando uma das manápulas pelo cabelo, gira o copo de amêndoa amarga entre as duas mãos. Vislumbrem, o louco bebe, espera-se folia na noite. Elevando aos lábios o néctar, sente o impacto profundo do limão e do gelo, tremendo quando o sangue desperta na jugular e o tempo parece abrandar um pouco. Afunda-se sobre os braços cruzados sobre a mesa, olhando para o balcão do fundo. Na penumbra erudita do café suspenso no tempo, fora da tempestade que se prepara lá fora, faiscam dois olhos, que se centram na forma feminina, que como gelo, dança com o chá uma valsa somente a dois. Desta vez, arriscarei um moscatel...

Os olhares cruzam-se então numa cumplicidade conhecida soltando murmúrios visuais perfeitamente compreensíveis. Aproximo-me então com movimentos etéreos desse louco que se senta numa mesa de café. Sorrio. Os passos ecoam pela sala pequena, contrariando as leis da física. Naquele pequeno espaço de mundo, a própria gravidade parece desafiada pelo estranho peso de alma, aligeirando um pouco a consciência e o coração, decerto dois dos elementos mais pesados do corpo humano, que tanto curvam e abatem. Dilata-se o ferro no sangue, e ela aproxima-se, valsando através do bosque de pequenas mesas e bancos toscos de madeira, evitando a cinza derramada dos cinzeiros e os pacotes de açúcar meio vazios. Ela pára perto dele, olhando-o com um falso desdém, sorrindo com o canto da boca e trilhando a borda do copo com o indicador. A face dele torce-se num divertido sarcasmo, tomada de súbito pela cruel figura de estilo, puxando o copo para perto dele, uma mão acenante aberta em gesto convidativo de companhia. Os olhos dele trilham-lhe a silhueta. Está mais magra. Surge uma sugestão de dentes brancos na boca dele, e a ironia cavalga a língua, juntamente com um apreço sobre-humano de igual para igual.

Margarida! Loira platinada de cigarro pendente! Aquele ser alto e pouco rígido, de lógica e sexualidade esbatida subtilmente no rosto e na forma, encantando tudo com os olhos verdes e o nariz tremeluzente sobre dois lábios fortes, cheios e rosados. Maldita escultura renascentista de ninfa, a bebericar chá de limão, com a língua entre os dentes, surgindo num misto violento de provocação de menina e olhar desterrado de mulher crescida. Irritas-me e fascinas-me! No teu discurso pausado e longo, de certezas e poucas dúvidas, de olhos semi-cerrados em furiosa argumentação, meio sorriso vendido a um café e a um vitória, que enterras rapidamente no pacote de açúcar vazio, como vã pelouro de vila estabelecida. Cruza as pernas no mogno da mesa tosca e esvazia sempre a sua mala, contentor de cabedal negro e mística cerrada, onde se escondem mistérios que nem os sábios das Luzes ousam espreitar! Muito bem, que seja. Senta-te e paga o moscatel com moeda corrente, que te aguarda agora mais um segredo de sexta-feira nocturna e de hora passada da decência, perto da janela que dá para o adro silencioso e para a rua abandonada. Senta o corpo cansado do expediente de trabalho, e conta-me o que se passa no mundo. Mas vejam só! Escondes-me as mãos por entre as pernas cruzadas, e dá-se-lhe a vontade imediata de gozar e contrariar, de dedos abertos e pescoço solto, numa gargalhada revolvente de sensação a vime enterlaçado e inteligência sagaz. Maldita princesa com cabelo tocado por Midas, olhos de Safira de Alexandria, tez de mármore de Rhodes!

- Senta-te, que me enfastias de pé, figura humana sem pressa. Vamos conversar.

- Muito bem. Mas antes, vê só o que encontrei num velho dicionário enciclopédico do meu bisavô: "Daniel, s.m. Tipo com piada, o melhor amigo que se pode ter; inv. Divertido, de um humor espontâneo que lhe sai naturalmente; adj. Louco, de ideias mirabolantes que desafiam a imaginação e intelecto do comum dos mortais; pess. Amigo fantástico que tem sempre na boca as palavras certas, mesmo nas situações mais inesperadas; nat. Camaleão, encaixa-se em qualquer grupo e ambiente mudando ligeiramente as suas tonalidades, mas nunca perdendo porém, cor que lhe é característica; fig. Alto; estrutura larga, bastante máscula, suficientemente indefinida para provocar nas demais, uma inegável vontade de abraçar; olhar de um castanho terno, por vezes com reflexos de lascividade boémia; feições pensativas de quem, embora cheio de humor, reflecte bastante nas questões que verdadeiramente o preocupam; cabelo ligeiramente encrespado e barba pouco definida que condizem na perfeição com a sua tez morena; lábios claramente de beijo, culminando num queixo deliciosamente colocado."