quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Au Revoir e Negra no Copo!

Margarida! Maldita e bendita efíge de mulher europeia, já te ouvi! Estou aqui, embora a minha forma cadenciada seja uma traição para o olhar. Não me julgues cansado, em escultura rhodiana de forma humana esculpida a cinzel em mosto de vinho, abatido por cansados pés alheios. Traição aos olhos, como referi, et tu visão, obelisco grego de Brutus e dos traidores de César? Não estou cansado maldita, apenas sarcasticamente fingidor. Sou poeta, permites-me que me chame isso? O meu ego permite-me a auto-intitulação, e dele já tenho pouco, como Guiness no copo gelado alto. Permite-me só o gesto de levar o cigarro aos lábios, que a levedura e o cereal aquecido deixaram-me espuma na garganta. Farei fogo com a ponta dos dedos.

Já está. E por referir o verbo "estado", tão exaltado pela conformidade social que nos rodeia nos cafés do quarteirão, que belo estado este, de extâse nocturno. Acaba-se o calor abafado da noite e desce-se a cortina esvoaçante do Estio. Já sinto o uivo endinheirado da gola alta em saldo algures. Não me apraz a partida do Verão este ano, esse amigo interesseiro e oportunista, de apenas três a quatro meses por ano! Mas vê que regressa o fresco e a chuva. Reviva-se o conceito de lareira, vinho do Porto com canela, e Antero de Quental com Walter Whitman á luz de uma vela. O nu regressa, o calor torna-se dois, justifiquem-se os orgasmos que o suor roubou aos mais preguiçosos e frágeis! Haja loucura! O Outuno trás a lasciva possibilidade sexual do conforto, e ao mesmo tempo, observa a lentidão justificada. Espera, permite-me um trago de fumo. Desde que falo que não cumprimentava a nicotina. Não o farei de novo nesta noite.

Acabou a Guiness. Fechem as janelas, por favor, que já entra um fresco violável, morno. Por favor, um pouco de Radiohead? Obrigado á morena interessante por detrás do balcão, com um sorriso de levedura escurecida. Deixem entrar o Verão, ele que se sente á mesa, um cinzeiro e meio Conhaque para o rapaz. Segurem-lhe as malas de viagem, não o deixem partir ainda. Que ainda partilhe conosco meio dedo de conversa, indicador é claro, e que se perca pelas metáforas de quem o inventou e escreveu. Vamos dar-lhe uma réstia de pedaço humano bronzeado e rir da humilhação Primaveril que aguarda o tempo frio. Depressa, passa-me o meu casaco e coloca-lhe aos ombros, mesmo que reclame, em jeito de irónica oferta. Tirem-lhe a lareira da frente. O rapaz vê paixão nas chamas e não se impertina em voltar se o mundo o aguarda. Retirem-se as nuvens do céu e venha a trovoada. E que chovam deuses e sapos, que os poetas tristes aguardam a melancolia perturbada da chuva na janela para relatarem, em cortes de papel e canetas sem tinta, as suas mágoas a trauseuntes invísiveis dos seus vestíbulos. Vão escrever as vossas tristezas para as vossas sanitas espirituais malditos! Para mim? Mais Guiness e um cinzeiro limpo, que este tem ar de tristeza! Merda! Brilha-me o olhar, traidor, desta vez o alcóol forçou-te a verdade! Não se separe a alma do homem, mas o homem da alegria. Deixem-me rir! Adeus Verão prazenteiro, que leves contigo o teu látex, o teu carvão na brasa, a tua borracha queimada, a minha face na janela do carro a observar o Mediterrâneo e o Douro. Deixa-me que não ficarei parado. Não tens velocidade para mim, Estio impetuoso! És demasiado jovem para a minha alma, Verão traiçoeiro! Tenta acompanhar-me e ver-me-ás mergulhar na vida como ninguém faz nos teus mares quentes! Olha e aprende petiz insolente de Cronos e Gaia, filho ígnio do Cosmos, e aprende como se vive, sem partidas ou destinos!

E tu Margarida, acompanhas-me? Enche o copo e acende esse cigarro. Esquece a Moleskin, o cabedal seco da capa não deixa as páginas humedecer. Concentra-te no ponto flutuante de chamas á nossa frente. Para onde vai? Direito para o meu ventre, em gesto de violência contra o meu esterno. Vamos aguentar o golpe e ver o Inverno de lado, através do topo do bar do Charlton em Lisboa? Deixe-mo-los sufocar nas gravatas deles, uso linho no corpo e seda no olhar, e ainda se me queimam os pés de não ter dinheiro para mais uma bebida, mas de ter a força para o barril de onde vivo. Vamos beber? Mas antes jovem Verão, que cruzes essa porta imbecílica espaço-temporal humana, vem cá.

Mas inclino-me sobre a mesa. O fumo cerca-me a cara sorridente. Puxo-lhe a manga, e salta-me para o boca o cheiro a cinza e fogo. Com a labareda a saltar entre a língua, faço-lhe uma última pergunta, em jeito de despedida. E tu Margarida, acompanha-me no meu movimento, pois interessa-te a questão que dança em incêndio nos meus lábios. E nada te deixaria mais satisfeita do que esta resposta ao nosso amigo de partida.

"Há tempo ainda para um pouco de Poe e Eça ao luar?"

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Queixa Ouriçada

- Daniel, sua criatura mefistotélica, consideras correcto deixares a tua loura de cigarro pendente, plantada nesta mesa de café, numa espera tão pendente como o cigarro que tenho entre os lábios?

És um velhaco semelhante aos vilões de um qualquer conto perdido de aldeia longínqua! Só por tua causa, meu delicioso facínora, bebi já duas Vodkas tónicas e três Drambuies. Seu neo - D. Sebastião entediante! Acresce, só para me ouriçar, o facto de não estar nevoeiro, prenúncio eminente de que também hoje não aparecerás, claro!

Não fosses tu tão misteriosa criaturinha, de conversa erudita e piropos agri-doces, já me teria ido embora há muito, cansada de esperar. Pensei que aparecerias após o meu regresso das Arábias, contudo teimas em esconder-te entre todas as tuas ocupações, qual animal esquivo e fugidio.

Pois digo-te, ser hediontamente amoroso, que se não apareces bem depressinha, desembainho o meu Moleskine das profundezas das bainhas do meu saco e conto-lhe tudo o que tinha para te contar! E depois não te darei o direito a sentir ciúme, meu pequeno boémio desaparecido...

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Escritonológico

- Por fim cá estou, nestes escassos e humildes metros quadrados de chão, que facilmente seriam considerados por mim, pérola em ostra de tédio. Não fazes ideia, pequeno boémio, do quão entediante foi hoje, o período decorrido defronte à minha secretária de canetas, folhas e cadernos em desalinho, assim como prosas não literárias e imagens fastidiosas que se vão alinhando no meu monitor e desperdiçando as minhas horas. Todo o escritório é um antro tecnológico com algumas velharias informáticas dispersas aqui e ali. Carcaças de antigas máquinas e verdadeiras relíquias, numa mistura caótica com equipamentos recentes e novelos de fios eléctricos perdidos entre tomadas.

Pessoas afáveis em meu redor juntam-se diariamente a mim, num solidário silêncio de palavras durante o tempo da labora, lembrando vagamente companheiros de guerra, cada um no seu espaço, mas todos reunidos num mesmo lugar físico e psicológico. Todos têm direito a dias mais azuis e a outros de diferentes tonalidades, mas as forças acabam por equilibrar-se num esquema de vectores newtoniano, em que é impossível permanecer sombrio por muito tempo.

Bill Callahan e outros entoam as suas melodias, às vezes num segredo murmurado ao meu ouvido, outras numa alegre cantoria geral, aligeirando o ambiente. De quando em quando, conversas súbitas cruzam o ar em alegre tumulto, terminando tão depressa como começaram.

Olha, pede-me um moscatel! Esse vinho licoroso liberta-me de toda a tensão acumulada, constituindo a chave da corrente que me prende o tornozelo da alma, a uma bola de ferro imaginária. Sim, com casca de limão e uma pedra de gelo, por favor.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Descrições Indescritíveis

Chego ao Café numa noite de Outono. O vento deixa-me o cabelo em desalinho e sobe-me a saia ao estilo desse ícone que é Marilyn Monroe. Abro a porta através do postigo. São 21:43, horas de parado movimento, noite de quarta-feira, de um mês de folhas caídas sem feriados. Há um longo silêncio na sala âmbar, um ambiente violentamente cruzado entre o monástico e o profano. Longos bancos de madeira corridos e quietos contrastam com o brilho das poucas lâmpadas eléctricas a dançar nas garrafas, de sentinela adormecida e espirituosa na parede. Aproximo-me do balcão de madeira e peço um chá de limão. Uma nuvem de vapor de água quente irrompe subitamente da tumular máquina de café, lançando um silvo agudo que troveja por debaixo da televisão ligada. São 21:48 e nos cinco minutos que se arrastam naquele sítio sem tempo, já o limão se despedaça em casca fina, e emulsiona na chávena branca. A pequena criatura que se encontra atrás do balcão é agri-doce atendendo-me de um modo antipaticamente educado. Olho para o fundo da sala e vejo um perfil conhecido encostado à janela. Afinal, talvez precisasse de algo mais forte que um mero chá de limão...

Recortado contra o papel de parede amarelo, que decerto em anos passados fora sucesso, o louco agita-se no interior do casaco de cabedal, observando a janela próxima, onde duas gotas de água se despenharam num burburinho de gente crescida, arremessando-se com força contra o vidro baço de tabaco como crianças. Passando uma das manápulas pelo cabelo, gira o copo de amêndoa amarga entre as duas mãos. Vislumbrem, o louco bebe, espera-se folia na noite. Elevando aos lábios o néctar, sente o impacto profundo do limão e do gelo, tremendo quando o sangue desperta na jugular e o tempo parece abrandar um pouco. Afunda-se sobre os braços cruzados sobre a mesa, olhando para o balcão do fundo. Na penumbra erudita do café suspenso no tempo, fora da tempestade que se prepara lá fora, faiscam dois olhos, que se centram na forma feminina, que como gelo, dança com o chá uma valsa somente a dois. Desta vez, arriscarei um moscatel...

Os olhares cruzam-se então numa cumplicidade conhecida soltando murmúrios visuais perfeitamente compreensíveis. Aproximo-me então com movimentos etéreos desse louco que se senta numa mesa de café. Sorrio. Os passos ecoam pela sala pequena, contrariando as leis da física. Naquele pequeno espaço de mundo, a própria gravidade parece desafiada pelo estranho peso de alma, aligeirando um pouco a consciência e o coração, decerto dois dos elementos mais pesados do corpo humano, que tanto curvam e abatem. Dilata-se o ferro no sangue, e ela aproxima-se, valsando através do bosque de pequenas mesas e bancos toscos de madeira, evitando a cinza derramada dos cinzeiros e os pacotes de açúcar meio vazios. Ela pára perto dele, olhando-o com um falso desdém, sorrindo com o canto da boca e trilhando a borda do copo com o indicador. A face dele torce-se num divertido sarcasmo, tomada de súbito pela cruel figura de estilo, puxando o copo para perto dele, uma mão acenante aberta em gesto convidativo de companhia. Os olhos dele trilham-lhe a silhueta. Está mais magra. Surge uma sugestão de dentes brancos na boca dele, e a ironia cavalga a língua, juntamente com um apreço sobre-humano de igual para igual.

Margarida! Loira platinada de cigarro pendente! Aquele ser alto e pouco rígido, de lógica e sexualidade esbatida subtilmente no rosto e na forma, encantando tudo com os olhos verdes e o nariz tremeluzente sobre dois lábios fortes, cheios e rosados. Maldita escultura renascentista de ninfa, a bebericar chá de limão, com a língua entre os dentes, surgindo num misto violento de provocação de menina e olhar desterrado de mulher crescida. Irritas-me e fascinas-me! No teu discurso pausado e longo, de certezas e poucas dúvidas, de olhos semi-cerrados em furiosa argumentação, meio sorriso vendido a um café e a um vitória, que enterras rapidamente no pacote de açúcar vazio, como vã pelouro de vila estabelecida. Cruza as pernas no mogno da mesa tosca e esvazia sempre a sua mala, contentor de cabedal negro e mística cerrada, onde se escondem mistérios que nem os sábios das Luzes ousam espreitar! Muito bem, que seja. Senta-te e paga o moscatel com moeda corrente, que te aguarda agora mais um segredo de sexta-feira nocturna e de hora passada da decência, perto da janela que dá para o adro silencioso e para a rua abandonada. Senta o corpo cansado do expediente de trabalho, e conta-me o que se passa no mundo. Mas vejam só! Escondes-me as mãos por entre as pernas cruzadas, e dá-se-lhe a vontade imediata de gozar e contrariar, de dedos abertos e pescoço solto, numa gargalhada revolvente de sensação a vime enterlaçado e inteligência sagaz. Maldita princesa com cabelo tocado por Midas, olhos de Safira de Alexandria, tez de mármore de Rhodes!

- Senta-te, que me enfastias de pé, figura humana sem pressa. Vamos conversar.

- Muito bem. Mas antes, vê só o que encontrei num velho dicionário enciclopédico do meu bisavô: "Daniel, s.m. Tipo com piada, o melhor amigo que se pode ter; inv. Divertido, de um humor espontâneo que lhe sai naturalmente; adj. Louco, de ideias mirabolantes que desafiam a imaginação e intelecto do comum dos mortais; pess. Amigo fantástico que tem sempre na boca as palavras certas, mesmo nas situações mais inesperadas; nat. Camaleão, encaixa-se em qualquer grupo e ambiente mudando ligeiramente as suas tonalidades, mas nunca perdendo porém, cor que lhe é característica; fig. Alto; estrutura larga, bastante máscula, suficientemente indefinida para provocar nas demais, uma inegável vontade de abraçar; olhar de um castanho terno, por vezes com reflexos de lascividade boémia; feições pensativas de quem, embora cheio de humor, reflecte bastante nas questões que verdadeiramente o preocupam; cabelo ligeiramente encrespado e barba pouco definida que condizem na perfeição com a sua tez morena; lábios claramente de beijo, culminando num queixo deliciosamente colocado."